UMA PORTA PARA A AVENTURA

Uma infancia cheia de sonhos e um sonho de infancia cheio de aventuras.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

VIDA CIRÚRGICA - O COMEÇO DO MEIO


Era meia noite de uma quarta-feira de clima ameno e a paz reinava em nossa casa.  De repente, uma dor abdominal, que surgira no começo da tarde e insistia em corroer as minhas entranhas noite adentro, deixou-me muito aflito. Direto para a emergência do hospital Centro Médico, uma consulta. A minha querida companheira, que acabara de chegar do trabalho, foi quem me acompanhou em mais esta etapa. A sua calma, como sempre, tentava me fazer tranquilo, mas as dores aumentavam e eu não conseguia me segurar.
- Precisamos investigar – disse o médico que estava de plantão naquele turno. – Vamos fazer exames de sangue, urina, radiografia, ultra-sonografia e tomografia computadorizada.
Tudo foi feito às pressas para saber o porquê do meu intestino não estar fazendo seu curso completo, ficar obstruído e trazer tanto desconforto ao organismo todo.
- Quantos anos o senhor tem? Já fez outras cirurgias? Alimenta-se bem? Fuma? Usa bebida alcoólica? Infelizmente vamos ter de internar para uma intervenção cirúrgica. O senhor sabe dos riscos? Quem está acompanhando o senhor? Tem que ser imediatamente. Vamos encaminhá-lo para o setor, o senhor pode ir sozinho?
 - Quatrocentos e dez. Já está reservado para o senhor. Pode aguardar que a moça vem lhe buscar.
As palavras iam sendo assumidas, as ordens cumpridas parecendo que eram rotinas conhecidas que levavam a um destino também conhecido.
Ao meu lado, a minha grande companheira disfarçava o seu choro para me deixar mais confiante. A nossa tristeza refletia outras situações já passadas no mesmo hospital. No entanto, agora levavam a riscos maiores e as expectativas podiam não ser muito boas.
Foram seis dias de ações involuntárias, toleradas por uma força interior que superou todas as expectativas. Agora sentado no sofá da sala, eu vejo o ambiente e digo: não parece que aconteceu tudo.  Meus amigos se revezam a me visitar, cada um de sua forma trazendo um conforto a mais. O telefone toca e mais uma resposta: minha missão não terminou, eu ainda tenho muitas alegrias a viver e muitas ações a fazer.
Eu ainda preciso achar um jeito de mostrar ao mundo que a maneira certa de viver é amando. Amar a cada momento de vida, a cada situação de alegria, a cada filho, a cada amigo, a cada almoço, a cada lanche, a cada poesia, a cada crônica escrita, a cada livro lido, a cada história contada.
Eu quero deste meu jeito simples de viver poder mostrar que a paz só existe se for acompanhada de um bom relacionamento. Relacionar-se bem com as pessoas é ser sincero o bastante para agradar e ser fiel o bastante para conquistar.
Eu sei que ainda tenho muita coisa a fazer: quem sabe conhecer um pouco mais sobre Deus, um pouco mais sobre a natureza, um pouco mais sobre os animais, um pouco mais sobre os homens. Tudo sobre mim. Sei que ainda estou no começo do meio e muito longe do fim.
Tenho plena convicção que a minha vida ainda está plena e ativa. Se eu não posso cavucar a terra para plantar a semente, eu posso com certeza aspergir água nas plantas já crescidas.  Se eu não posso colher e transportar os frutos, eu posso com certeza reunir as pessoas para o banquete.
E quero ainda conhecer um mundo mais justo. Que as pessoas olhem umas para as outras com o desejo de que sejam felizes.  Que as pessoas se vejam no outro e possam compartilhar conhecimento, espaço, carinho, afeição, aconchego e amor. Que elas, em cada degrau do seu poder e em cada piso de sua subordinação, possam ser justas nas ordens e inteligentes no cumprimento, justas nas ações  e coerentes na aceitação, justas com a natureza e inteligentes com a vida.

Paulo Carvalho de Freitas
Agosto de 2011

segunda-feira, 15 de março de 2010

CURVAS DE NÍVEL

O sol nem sonhava em aparecer no horizonte e as batidas do machado já se confundia com os piados e os cantos dos passarinhos que nervosos pela invasão do seu habitat, buscavam socorro em lugares mais seguros da mata. Era o Aparecido que trabalhava já há alguns dias na preparação das terras para a cultura do café.Alguma ajuda do Compadre Paulo e do Compadre João, mas o trabalho mais pesado ele mesmo sentiu nos braços e nas costas. “Rube, Mirnadel, forma outra lera por ali. Esses gaios de anjico deixa que eu vô cortá mais pequeno senão ocêis não consegue carregá.”“Papai, a mamãe mandou o sinhor tirá um parmito prá nóis levá pra janta. Tem um ali embaixo, perto daquela arueira. Ele já tá bão prá cortá.” – A mirnadel mostrava apontando para um capão de mato ainda por cortar.O extrativismo do palmito guarirova e macaúva, era uma ação normal naquele tempo. A preocupação de reposição natural já fazia parte da cultura. Nenhuma árvore-mãe do coqueiro era abatida e todos os “filhotes” eram preservados com o maior carinho.“Vem cá Rube, me ajuda a tirá o coqueiro. A mirnadel vai mais cedo e leva prá sua mãe. Depois ela aproveita pra ajudá ela a arrumá a janta prá nóis.”O menino seguiu em direção ao pai numa picada que dava direto na árvore do coqueiro que seria transformado logo mais no jantar da família.Algumas semanas e uma clareira já se via na mata. Os troncos dos angico iam se acumulando enquanto as ramas mais leves vão se amontoando em leras num desenho sinuoso que o patrão insiste em chamar de curvas-de-nível, uma proposta de técnica nova de cultivo para evitar a erosão. O barulho se calava somente quando o sol se punha e a cada amanhecer uma nova etapa do trabalho se realizava.O clarão se fez num todo e uma área de dois alqueires foi ao chão. Da estrada até a divisa das terras do Sr. Carlos era tudo derrubada. Um crime ecológico necessário.Derrubar, descoivarar, destocar. Estes eram os verbos mais pronunciados naqueles tempos de preparação da terra. O fogo culturalmente era o grande auxiliar no trabalho de limpeza da terra. Depois de fazer os aceros em toda a volta da derrubada, era tocado fogo nas coivaras e as línguas das chamas iam devorando tudo noite a dentro. Algumas madeiras de cerne mais duro como a pataca, demoravam vários dias se queimando. Durante a noite, quando o vento soprava mais forte, pareciam pequenos dragões a soltar rajadas de estrelas salpicando de brasas o chão negro da escuridão.A terra limpa afofada pela chuva que veio em boa hora, trouxe a responsabilidade de iniciar a plantação do café. Projeto de todo aquele trabalho.“Traça a linha, curva à direita , curva à esquerda. Curva de nível. As linhas das covas devem seguir o traçado do nível do solo, para que a água das chuvas se desloquem sempre na lateral e não provoquem erosões.” - A técnica de plantio devia seguir à risca. E as orientações vinham do patrão.“Curvas de nível.” - Orientava o Sr. Augusto Vasconcelos que supervisionava toda a preparação do terreno.Depois das linhas traçadas, vão ser preparadas covas onde serão colocadas as mudas, chamadas de “balainhos”. Foi um trabalho duro. De “vanga” na mão ( vanga era a ferramenta usada para fazer as covas), os buracos quadrados de quarenta centímetros com quarenta de profundidade ( mais ou menos) eram feitos pela força física. (Hoje não se faz mais essas covas, as mudas de café são plantadas ao nível do solo). Foram quatro mil covas, foram quatro mil mudas.Ao meio de cada “rua” de café eram plantadas culturas regulares como o milho, o arroz e o feijão. Em cada vão de pé de café sempre nascia um mamoeiro, um pé de melancia, de melão. Era a festa dos meninos. Cada fruta colhida substituía a caneca d’água quando a sede apertava e a moringa estava distante. As covas de café deveriam ser limpas com freqüência, pois a terra da capina e as folhas das culturas auxiliares se encarregavam de cobrir as mudas de café ainda tenras e poderiam condená-las ao sacrifício.A alegria foi quando as primeiras flores branquinhas se abriram no cafezal. Era de manhã e o sol nem tinha saído e os meninos estavam à postos para mais um dia de trabalho. A Zilda foi a primeira a perceber uma flor, e depois outra e cada um saiu correndo encontrando outras muitas que desabrocharam naquela noite, exalando um cheiro gostoso. E as abelhas já rodeavam com seu zum zum zum , levando nos pés o polem da fertilização. Era a previsão que roça estava pronta para produzir muitos frutos e garantir o sustento da família. E mais uma vez o Aparecido dizia: Graças a Deus.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A GATINHA CHANA

A GATINHA CHANA

Depois da casa barreada e os acerto da colheita com o Sr. Zeíco, a mudança foi feita ainda naquele mês. O caminhão do “Seu Chiquim Pedro” um pequeno sitiante da vizinhança, estava a postos cheio de coisas pra descarregar. Para as crianças foi uma festa. Casa nova, amigos novos. As aventuras para os pequenos começara logo na chegada.
Os animais ainda se adaptavam ao novo ambiente. O cachorro Perigo, filho da cadela Campina logo se pôs a urinar pra todo canto, e logo se escafedeu no mato a correr algum preá que se colocara assustado com todo aquele movimento.
Tinha também a gata Chana, que parecia não entender bem aquela mudança. O lugar preferido dela era o paiol de milho e até então não havia se encontrado em toda casa. Miava alto parecendo querer uma explicação lovável.
- Paulinho, pega a Chana, dá um pouco de comida prá ela. Sinão ela não se acustuma e vamimbora.” – A mãe atenta a todos os detalhes, estava preocupada com o pequeno animal que tinha a função de caçar os ratos e comundongos que insistia em vir furar os sacos de arroz e farinha que ficavam na dispensa da casa.
O menino, filho caçula, saiu a correr atrás da gata para pegá-la. Conseguiu agarrá-la em cima da cama tentando pular a janela.
- Peguei mamãe, cadê a cumida dela?” (Para o menino Paulinho aquilo seria uma grande brincadeira.).
- Taí na trempa do fugão. Mistura um pôco de arroiz cum feijão e põe neste prato de esmarte amassado. Sigura ela um pouco pr’ela cumê, depois pode sortá que ela vai ficano acustumada.”
A gata Chana ficou logo seduzida pelos encantos daquele menino e começou a comer devagarinho o prato de comida, até lamber as bordas de feijão respingado que a pouca coordenação do caçula deixou no caminho da concha do caldeirão ao prato. Um afago a mais não faz mal a ninguém. Dali a pouco a gata estava rolando num trapo velho escolhido num canto do quarto onde repousavam uma pilha de roupas e panos que ainda estava prá arrumar. O caçula se encantou com o animal e esqueceu totalmente o trabalho de descarregamento da mudança.
- Paulinho, larga mão dessa gata um pôco e vem já pra me ajudá a guardá esses trem na cozinha. Pega aquele bule ali e põe em cima do fugão. Pega a chaleira tamém.
O menino fez de conta que não ouviu e continou a afagar a gata que já parecia estar no seu habitat natural.
- Peraí que eu vô dá um jeito nesse muleque. – Gritou o pai, vendo a desobediência do menino à mãe.
- Vem prá cá já sinão eu te pego de cinta.
Num pulo a gata saltou para um lado e o Paulinho do outro. Pegou a chaleira e o bule e levou para a cozinha, colocou em cima do fogão e se apresentou à mãe.
- Tem mais arguma coisa prá levá, mamãe?
- Pegue esses prato embruiado nos guardanapo e vai pono em cima do guarda-comida. Dispois nóis guarda direito.
Todo mundo estava envolvido. As poucas coisas da casa iam tomando os seus lugares. As meninas cuidavam das roupas, das louças, dos utensílios. Aos homens sobravam as coisas mais pesadas e mais rústicas como as coisas da dispensa, o estoque de arroz, de feijão, de açúcar e de sal.
- Papai, nóis vai colocá o saco de sal no chão memo? – perguntou o Rube sabendo que na outra casa o sal ficava num girau para não pegar umidade.
- Põe aí por enquanto, dipois eu faço dois cavalete e com umas ripa de guairova nós faiz um girau novo e põe tudo em cima. - O pai falava com convicção, pois ele sabia como ninguém trabalhar a madeira e as idéias.
- Parecido, nóis esquecemo de arranjá um lugá pro pote. Dispois ocê tem que fazê um girarzinho pra por no canto da cozinha. Acho que naquele canto do outro lado do fogão, alí parece ser mais fresco. – Era a Irondina que estabelecia os espaços: o armário, a mesa, as cadeiras, o guarda-louça, etc.
Ao final da tarde, uma pausa para o descanso e para saborear um bolinho gostoso com café fresquinho feito no fogão de lenha ainda novinho, construido pelas mãos do mestre Aparecido.
Sentado no baldrame da porta da cozinha, o chefe da casa olhava os fundos e planejava a preparação do terreno onde seria construído o chiqueiro dos porcos. Era preciso ainda limpar, tirar os tocos e cortar as madeiras no mato para a cerca.

O tempo foi passando e o lugar foi se transformando: uma roça de mandioca, uns pés de abacaxi, uma mangueira, um pé de tamarino. As cercas e piquetes foram delimitando os espaços e criando ambientes. O chiqueiro dos porcos foi construído com troncos fincados na vertical. Dentro uma pequena cobertura com telhas para proteger os coxos onde se colocava as lavagens (sobra de comida) e o milho debulhado. Este espaço era importante, pois da criação de porcos dependia a sobrevivência da família. Dos porcos se tiravam a gordura para as frituras e a carne para a mistura do dia a dia. Um novo mundo e uma nova história. Era a “nossa casa” como dizia o Aparecido. O carinho e a paixão que sentia por este pedaço de chão transformava todas as coisas que construía em uma obra de arte. E tudo foi se transformando numa grande galeria. Uma galeria que ficou marcado nos corações daquela família e nos versos que rabiscava nas folhas soltas de caderno que sobrava das lições dos meninos.

A GRANDE COMPANHEIRA

Das três casas que se ergueram no sítio, a casa do Aparecido foi a última a ser construída. Ele deixara para se mudar um ano depois dos irmãos porque precisava terminar a colheita de algodão, contrato de meieiro firmado com Sr. Zeíco, um sitiante do Córrego do Arrancado. A casa se destacava por ser a primeira da entrada. Os cômodos foram divididos para receber sua família composta de seis filhos: três homens e tres mulheres. O mais novo, um menino, tinha apenas três anos e a mais velha, Del, doze anos.
A esposa e grande companheira vivia para cuidar das coisas da casa e das crianças. Uma mulher de muitos dotes: organização e limpeza eram suas maiores virtudes. Na culinária não existia um só prato tradicional que ela não conhecia. Podia pedir canjica, bolo de fubá, pamonha, doce de mamão, doce de abóbora, biscoitos de polvilho e mais uma porção de receitas que ela guardava tão bem em sua memória. Na costura também tinha seus dons. Corte de camisa e de calça não tinha problema. Saia pras meninas, calção para os meninos e alguns bordados para os panos de prato. Naquele ano ganhara uma máquina de costura de pedal da “Vigorelli”, o presente que tanto sonhara.
Conta-se que o casamento dos dois se dera por uma contigência do destino. Eles eram primos de segundo grau e moravam na mesma região, um pequena colonia de lavradores próximo ao município de Macedônia no interior de São Paulo. Naquele tempo os namoros eram mais discretos e mais respeitosos.
Ela era uma moça bonita, recatada e de grandes virtudes. Eram poucos que não viam nela um bom partido para um namoro firme para compromisso sério.
Ele era um moço viçoso, gostava de usar boas roupas e de frequentar boas festas. Sua vida era simples e se alegrava com seus amigos jogando futebol e cantando músicas sertanejas. Sabia afinar uma viola como ninguém. Rio Acima era a melhor afinação. Seus melhores companheiros nas cantorias era seu padrinho Marcílio e seu irmão.
Quando acontecia um casamento, grande acontecimento naquele tempo, todos iam de caminhão prá cidade. Os caminhões eram muito usado neste tipo de transporte, pois automóveis ou vans era sonho, principalmente para aquelas pessoas que mau conheciam o trem de ferro. O caminhão era preparado com uma corrente transversal que ligava uma borda à outra da carroceria que servia como apoio e segurança nas danças do jogo de molas quando passava nos buracos das estradas mau conservadas pouco acostumadas ao uso por caminhões ou carros.
Cido se animara quando viu a prima subir no caminhão e procurou um jeito de chegar perto para continuar uma conversa que já vinha de algum tempo. De repente o caminhão tropeçou, balançou e a mão na corrente se tocaram e os olhares se fixaram um no outro e, por algum tempo o calor do toque parecia uma sensação de sabor e adrenalina. As mãos não conseguiam se mover e o calor da face tingia de rosado o semblante dos dois.
O momento foi de tamanha emoção que não perceberam Seu Chico ao lado deles.Um homem sério, barba por fazer, jeito de matuto, numa voz grossa e sem rodeios rompeu o clima daquele momento:
- Cido, dispois ocê passa lá em casa prá nóis acertá esse negócio do seu casamento com a Ronda. Parece que essa estória que ouvi falá por aí tem fundamento. O negócio já tá muito adiantado”.– Sua voz era compassada e direta.
O seu Chico era o pai, e se sentiu no dever de intervir tentando resguardar a boa moral e costume de não faltar com o respeito.Naquele tempo pegar na mão só podia depois de assumir compromisso de casamento com a família. Se a moça se deixava tocar com estas liberdades, poderia ser taxada de mulher fácil e não conseguir bom casamento.
- É bão que seja já na semana que vem. Eu num tô gostano desse negócio de rela-rela não.”
- Tá bão Tio Chico.” – Aparecido sentiu que não adiantava discutir. - Pode dexá que no domingo que vem nóis conversa.”
Passaram alguns meses e acertaram o casamento.
Foi uma cerimônia simples como simples foi o começo da vida dos dois. Sem ter ainda uma direção certa nem um contrato de trabalho, o Aparecido resolveu aceitar a proposta do sogro de morar em sua casa, um rancho mau arrumado na beira da roça, e trabalhar no roçado de um sitiante conhecido que prometeu ajudá-lo. Naquele tempo o Tio Chico estava morando sozinho,perto de Macedônia.
Não foi por muito tempo que os dois viveram com Tio Chico, pois o seu jeito deseducado de tratar chegou ao limite da tolerância.
Um dia chegando do trabalho cansado, uma conversa foi a gota d’água para o Aparecido tomar uma atitude:
- Eu num quero ninguém espantano mias galinha por munto tempo aqui no terrero. É bão ocê arranjá um modo de vida logo, sinão nóis ainda vai tê inguiço”.
Cido não disse nada, entrou prá dentro, guardou as traias e foi tratar dos porcos no chiqueiro.
Depois do banho de bacia e o prato de arroz com abobrinha, uma conversa com a companheira, foi dormir decidido a tomar um rumo. Levantou no outro dia bem cedo e não foi direto prá roça: antes foi em busca do seu destino.
Ao final do dia voltou com uma boa noticia: conseguira um lugarzinho ao sol cedido pelos Manente, a familia de sitiante para o qual ele já trabalhara o roçado.
O rancho já estava pronto, mas não tinha nada para levar: uns poucos trens de cozinha, uma lata de gordura, um litro de querozene, uma lamparina, umas roupa e algumas ferramentas. Cabiam tudo em duas malas. A cama de dormir foi construída num girau, uma espécie de prateleira, com a largura de um metro e meio feita com quatro troncos roliços fincados no chão, mais quatro travessa amarradas com cipó e forrado com ripas de coqueiro, trançadas com embira de bananeira. O colchão era de palha de milho, rasgada bem fininho, e quando era mexido dava uma forma arredondada e macia.
O trabalho na roça era duro e ocupava o tempo de sol a sol. Na volta do dia-a-dia sempre encontrava no lar uma boa companhia e um bom colo para o descanso e a boa terapia do sono.
O passar do tempo trouxe também as mudanças de vida. A primeira gravidez deu-se naquele mesmo ano e foi a primeira graça recebida pela família: uma filha linda que recebeu o nome de Maria Mirnadel e depois somente Del. Depois vieram os outros: Rubens, Zilda, Nair, Marcilio e Paulinho.
Com as mudanças foram se fazendo novos amigos, novos conhecimentos, novos lugares. Foi o Geraldo Ignácio, Seu Miguel Lopes e Zeíco. Todos colaboraram na sua caminhada e no seu crescimento de vida , mas nada foi tão grande e tão importante quanto a presença constante da companheira, amiga e cúmplice. Um amor sem frescuras, porem com sobras de emoções para perdoar, para ouvir, sonhar e esperar.

ENGENHEIROS DE PAU-A-PIQUE

Naquele fim de semana o trabalho começou cedo. Os primeiros raios de sol já clareavam a cabeça dos meninos a baldear a terra que ia formar o reboco para as paredes da casa.
O trabalho parecia que iria render. Enquanto alguns meninos carregavam a terra retirada, outros ajudavam a preparar a massa que serviria para cobrir as paredes da nova casa.
Era preciso trabalhar em dupla: cada um cobria um lado da parede. Os dois pelotões de barro eram jogados na parede um contra o outro no mesmo momento e se fundiam num só bloco tampando as frestas existentes entre as ripas. Cada dupla com seu ritmo uma em cada parede, começando de baixo e subindo em tacadas coreografadas pelos movimentos de uma dança de duas mãos ensaiadas pela necessidade de ser solidário e buscar no outro somente a alegria de ajudar.

Já se ouvia lá num canto alguém a ensaiar uma moda qualquer:
- Levantei de madrugada,
Na minha besta bainha,
Fui numa festa de reis,
na fazenda lagoinha .
Pertinho de Porto Alegre
Eu cheguei lá de tardinha
Fazendeiro Zé valente
Família da gente minha...

- É isso aí! - Falou alguém lá no barreiro.
“- Eta, mundo véio sem porteira”. – Gritou o Paulo que trabalhava em uma das paredes. - E emendou junto:

- Sortei a mula no pasto
Dispois de dar um repasso
Dei uma vorta na sala
Sortei meus peito de aço
Vi uma morena trigueira
Fiz os verso no embaraço.
Quando eu repiquei a viola
Ela caiu nos meu braço ...

E as modas contagiaram também o pessoal que estava trabalhando no barreiro e o ambiente ficou alegre e suave.
O trabalho rendia de fato. A terra vermelha amontoada era misturada e molhada com baldes de água salobra tiradas do poço. Com os pés descalços, os meninos pisavam sobre o barro e aos poucos formavam uma massa liguenta que custava descolar dos calcanhares. Para os meninos e meninas tudo era uma grande festa.
- Tráis o barro gente! Aqui têm trabaiadô. Parece que aí só tem cantoria!”, reclamara o Aparecido por ter acabado o barro de sua caçamba.
As latas de barro foram chegando mais depressa e o trabalho seguiu seu rumo.

- Ô cumpade o meu estamo tá fazendo um baruio um poco estranho. Parece que ele tá adivinhando a hora. Já passa das nove e ninguém aparece com esse armoço” – O Paulo já reclamava de fome.
- Pode deixá essa cunversa de lado, cumpade, que daqui eu já tô vendo a comade Maria c’os cardeirão. Vem chegando mais a Ronda e os menino, cada um cum imborná. Vai ser um banquete! Pode falá aí pro teu estamo que ele vai se fartá de tanto cumê”. – O Aparecido trabalhava numa parede externa e conseguia ver a Maria e a Irondina chegando com as vazilhas cheias, trazendo o tão aguardado almoço.
- Ê pessoal!! Vamo tratá de lavá as mão que o armoço já tá no toco. – gritou.
Foi uma movimentação geral. Os primeiro a chegar foram os menino. Pareciam desesperado para se servir do almoço que trazia um tão cheiro tão gostoso que as lombrigas se remexiam por dentro das barrigas. De um lado a macarronada feita com molho de tomate natural e carne moída, trazida especialmente da vila, e de outro aquele arroz soltinho amarelado pelo pó do orocum (colorau) acompanhado de feijão e frango ao molho. Os caldeirões de alumínio que não ajustavam mais as tampas, de tanto que eram os amassados que continham, foram colocado um ao lado do outro em cima banco de prancha de madeira que o próprio Aparecido havia construído.
- Peraí, primeiro os mais véio. – gritou o Zé Batista , vizinho do sítio, quebrando o silêncio.
- Eu só quero cumê o coranchim do frango. O resto pode ficá pro cêis. – sugeriu o Paulo com seu jeito brincalhão.
- Fica tranqüilo Cumpade Paulo, nóis fizemo dois frango, vai sobrá curanchim. O Parecido gosta mais é do jogo, esse pedaço ele disputa com os minino lá em casa.- comentou a Irondina, chamada pelos cunhados de "Cumade Ronda".
- Mais hoje eu num faço questão de nenhum pedaço. Vocêis pode cumê quarqué parte do frango, se sobrá os pé pra mim já tá muito bão. O trabaio rendeu muito e eu tô muito agradecido a todos vocêis. Vamo armoçá todo mundo com a graça de Deus. – finalizou o Aparecido.

E os menino tomaram a frente da fila com os prato de esmaltado de "ferro agate[1]" (ágata) estendidos. As mãos hábeis das cozinheiras dividiam os pedaços de frango para que os mais velhos ficassem com as melhores partes, o que era parte da boa educação das crianças daquela família.
Depois de servido, cada um seguia por um lado, procurando uma sombra ou um canto para se sentar Só não tinha cadeiras, bancos era só escolher: o cabo do enxadão sempre servia prá alguém. O outro preferia o baldrame da porta ou o barranco do terreiro. À vontade...

Depois de matar a fome, todos tinham direito a cinco minutos pra cochilar um pouco por ali. As crianças aproveitavam para reinar pelos arredores a procurar um bicho ou alguma coisa para mexer.

Depois de entregar o prato satisfeito, o Aparecido ficou por ali a olhar de cômodo em cômodo a imaginar que talvez nem precisasse do domingo para terminar aquela tarefa. Se avançasse um pouco na tarde terminaria com folga.

- Ronda, pede prá cumade fazê um bolo prá nóis cumê na merenda. Vamo reforçá o pessoal que acho que nóis vamo terminá a tarefa ainda hoje. - Era de costume ter três refeições por dia: às nove horas era servido o almoço, à uma hora da tarde era servida a merenda (café) e depois o jantar que era servido mais ou menos as cinco ou seis horas. Algumas pessoas serviam na merenda uma repetição do almoço, isto é, comiam da sobra do caldeirão ou da marmita.
- Pode deixá. Nóis vamo fazê bolo de milho. Os minino gosta. Nóis já catemo dois saco de espiga de milho. Dá quase prá fazê pamonha. As espiga tão todas muito graúdas que só vendo – concordou Irondina
E foi-se embora os caldeirões vazios a balançarem nas mãos de quem os trouxe. Os guardanapos feitos de pano de saco de farinha de trigo ou de açúcar, que serviram de proteção ou alça para os pratos, jaziam pousados nos ombros das cozinheiras a esvoaçarem com o vento que refrescava um pouco do calor do sol que já se fazia alto naquela manha de sábado.

- Vamimbora pessoar. Quem vai trazê mais barro prá mim?.- o Aparecido já se colocava a postos prá começar de novo no serviço.
E cada um foi se movimentando em busca do seu posto de trabalho. Começando meio de devagar e entrando novamente no ritmo gostoso e alegre daquele convívio de amizade e cooperação.
O trabalho terminou cedo. Aparecido lavou as mãos, agradeceu a cada um que ajudara no mutirão, se afastou um pouco onde pudesse ter uma visão ampla da casa e gritou alegre:
- Quem disse que nóis num semo engenhero. Óia só que beleza! Nóis semo engenheiro sim. ENGENHEIROS DE PAU A PIQUE!!

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A PANHA DO ALGODÃO

Era de madrugada, o quarto ainda estava escuro quando a luz de uma lamparina entrou no quarto dos meninos e caminhou até a cama do Paulinho.
Era Dona Erondina, que se aproximou da cama em que o menino dormia e falou ao seu ouvido:
- Acorda Paulim, as menina já levantaro. Cê num vai panhá argudão com as menina tamém?
- É lá na roça do Seu Zé Carlo? – perguntou com voz sonolenta. - Se for lá eu vô.
- Intão pode levantá e lavá a cara. Eu vô prepara um carderão de cumida procê. As minina já tão quase pronta.
A “panha” do algodão era feita pelos meninos aos domingos ou feriados, que eram os dias de descanso na roça, e o dinheiro ganho neste trabalho ficava para suas compras especiais. O Paulinho queria ir trabalhar naquele domingo para guardar o dinheiro para comprar o presente para o dia das mães no bazar do Elias. Era um gatinho de louça muito bonito que há tempo era observado.
Paulinho colocou sua única calça de brim mescla, uma camisa de manga comprida e um chapéu de abas largas, um caldeirão de comida para o almoço que a mãe havia preparado e lá se foi em busca da roça de algodão.
A roça do Seu Zé Carlos não ficava longe do sítio. Vinte minutos de caminhada eram suficientes para chegar até o rancho onde ficava a balançam e os fardos.
A roça de algodão estava muito bonita, cada planta ostentava pelo menos vinte maçs abertas, o que consistia numa boa produtividade para as terras da região. O branco das maçãs abertas, parecia um lencol de plumas que deitava sobre a terra verde rodeada de pastos e plantações de milho. A roça não era grande, era proporcional ao tamanho do sítio, que diversificava entre a criação de gado leiteiro e as culturas de café, milho, arroz, feijão e algodão. Os pés de algodão não eram altos, e serviam certinho para o trabalho do Paulinho, que em algumas ocasiões até sumia no meio das ruas das plantações, por causa da sua pequena estatura.
Um pequeno balaio, feito com taquara ou bambú, e as mãos eram as ferramentas de trabalho. As mãos tinham que ser rápidas para conseguir ganhar o dia com sucesso. A cada balaio cheio o caminho até o rancho para ser despejado num fardo e, assim, no final do dia tudo era pesado e pago ao catador. A unidade de medida usada para os cálculos era a arroba, isto é, quinze quilos. Um menino como o Paulinho conseguia apanhar no máximo três arrobas de algodão por dia, quando trabalhado com seriamente.
Algumas ervas daninhas atrapalhavam o movimento por entre as plantas. Tinha um tal de carrapicho que se prendia nas roupas e chegava até a machucar a pele, quando o tecido era mais fino como era o da camisa, por exemplo. E nos momentos de descanso, os catadores ficavam a retirá-los com paciência. Na roça do Seu Zé Carlos também tinha bastante picão, uma planta que tinha como semente feixes de esporos pretos que se prendiam em blocos nas roupa e que dava trabalho para tirar.
Paulinho não tinha um fardo só para ele. A sua produção estava sendo colocada junto com o fardo da Zilda. No final, seria calculado o seu trabalho e o dinheiro seria dividido.
Já eram mais ou menos nove horas da manhã, hora do almoço, e todos se juntaram na sombra de uma mangueira no carreador da roça. Cada um no seu canto, todos almoçavam em silêncio. No caldeirão do Paulinho havia arroz com feijão, um pedaço de carne de porco e um ovo frito. Ainda estava meio morno e a fome transformava aquele prato no cardápio mais saboroso do mundo. Todos, inclusive o Paulinho, tinham uma preocupação de não comer toda a comida, pois na hora da merenda tinha que ter uma sobra para completar o desjejum. Para ele não havia problema, ele havia reservado uma pequena melancia que enontrara no meio da roça de algodão. As melancias nasciam entre as plantas naturalmente com a ação dos animais silvestres que comiam as frutas e espalhavam as sementes pelo terreno.
O menino terminou o almoço mais cedo que os outros e foi caminhar um pouco pelos arredores. Olhando sempre para baixo, a procura de algo interessante para brincar, observava os gafanhotos, louva-a-deus, as aranhas e as formigas que habitavam por entre as folhas das plantas. Do outro lado da cerca da roça, era um pasto onde ficava o gado leiteiro do Sr. Carlos. Muitos pés de coqueiros do tipo macaúva e Guairova se erguiam em toda a extensão do pasto, parecendo que foram plantadas de uma forma regular e bem distribuidas. Uma macaúva chamava a atenção do menino pela cor dos frutos que trazia em seus cachos.
- Deve de tá maduro. - pensaou o menino. - Vou lá vê.
E foi. Atravessou a cerca de arame farpado, caminhou por alguns metros adiante e já estava junto ao coqueiro. Depois de alguma procura, já encontrara pelo menos dois frutos no chão. Mordeu um deles e sentiu o cheiro gostoso do coco maduro. Atirou algumas pedras nos cachos fazendo cair mais alguns frutos, encheu os bolsos e se foi.
- Vô levá prá Zilda. - pensou falando baixinho. - Ela vai gostá.
A Zilda gostou tanto que decidiu, recolher mais alguns cocos depois do dia de trabalho. Normalmente os coqueiros que produziam os côcos mais doces e cheirosos eram marcados pelas crianças, pois nem todos possuíam tais qualidades.
No final do dia, o cansaço não poupava ninguém. Agora era ver o resultado do trabalho. O Seu Zé Carlos começava pesando os fardos mais cheios. A balança consistia em, de um lado, uma barra de ferro com escala de um quilo, num total de cento e cinquenta ( dez arrobas), onde deslizava um anel metálico que marcava o peso e, do outro, um contra-peso que fazia o equilibrio . Um gancho superior servia para pendurar e um inferior servia para enganchar os fardos de algodão.
A expectativa terminou quando o pesador disse:
- Centi quarenta quilo no totar. Nove arroba e e pôco. Vô pagá pro ceis nove arrôba e meia. Foi uma surpresa, não era um bom resultado considerando o trabalho dos dois, e o esforço ter sido grande.
- O argudão tá muito manero. - Explicou o Sr. José Carlos. - Só dá inchimento. Cê vê, dois fardo desse tamãe e só pesá isso. - completou.
Tudo certo. Com o pagamento já no bolso, os catadores de algodão voltaram para casa alegres e contentes, não esquecendo de passar no pé de macaúva para apanhar mais côcos.
Pelo caminho resolveram continuar por dentro do pasto para visitar o “pé de genipapo”, dono de umas frutas muito saborosas. Eles conheciam o endereço por ser no caminho da escola. Deram sorte, já começavam a amadurecer alguns frutos e a colheita rendeu pelo menos cinco e mais algumas que levaram para casa como troféu.
Já era quase noite quando chegaram em casa, e foram direto para o banho. O Paulinho foi primeiro , depois os outros. As meninas ainda foram “puxar” água no poço para colocar no fogo para esquentar. Naquele tempo o Aparecido já havia comprado um chuveiro de folha, que substituiu o “banho de bacia”.
O chuveiro consistia em um balde de vinte litros confeccionado em folha de lata, com uma saída de água por baixo, com um sistema de registro manual de alavanca que controlava a saída da água, e uma espécie de funil invertido com a base furada, por onde a água saia em ducha. A água era preparada num balde, com a mistura de água fria com água quente vinda do fogão, com a qual era abastecido o “chuveiro” por cima . O equipamento era levantado através de cordas e carretilhas à uma altura de mais ou menos dois metros, altura suficiente para os adultos ficarem por baixo para tomar a ducha d’água.
Depois do banho, a roupa limpa, um bom jantar preparado com carinho pela Dona Erondina , e ainda sobrou energia para correr no terreiro atrás dos vagalumes, até que a mãe chamou:
- Zilda, vem prá dentro e chama os minino prá lavá os pé prá dormi. Amanhã têm que pulá cedo prá ir prá escola.
A ordem foi cumprida e o cansaço superou as energias.
- Bença, papai. Bença, mamãe.
- Deus abençoe.
E o silêncio reinou naquela casa até o dia seguinte.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A CAMINHO DA ESCOLA

O dia parecia igual aos outros. O sol ainda demorava para mostrar-se no horizonte e todos se movimentavam de um lado para outro na casa em busca de seus objetivos. Num canto da cozinha, sentado numa cadeira de palha de taboa, Paulinho olhava com os olhos ainda remelentos da noite de sono, as chamas do fogão que ardiam num tronco de madeira a esquentar a água da chaleira. Sua mãe cantarolava uma cantiga qualquer enquanto manipulava os utensílios para passar o café no coador de pano .
As pequenas labaredas do fogão induziam o pequeno a imagens de angústia e desespero. O seu coração batia apressado. Cada minuto que passava aumentava a sua palpitação e parecia que o seu peito ia explodir. A expectativa e a ansiedade de uma novo acontecimento, mexia com toda a sua integridade física e emocional. Hoje, era o dia . O primeiro dia.
- Vá lavar essa cara menino , dizia sua mãe.
- Vá tirar essas remelas!
E foi. E junto com ele seguia o desespero de enfrentar uma situação nova no seu pequeno mundo infantil.
Naquele tempo, a pouca vida social e a timidez lhe faziam sempre mergulhar em suas entranhas para vivenciar as suas estórias onde não existiam nada além do sítio, da família, dos animais e um mundo de aventuras solitárias.
- Pronto, já lavei o zóio. O que que eu faço agora? - pensou ele sentando-se novamente na cadeira e ficando a observar sua mãe no preparo dos caldeirões de comida que serviriam de merenda .
- Vamo, minino, vai trocá de roupa que os outro já tão pronto” - gritou sua mãe.
Ele demorou a levantar-se. O que ele queria mesmo é que a mãe lhe ajudasse naquelas tarefas. Que conversasse com ele . Que o encorajasse. Que lhe fizesse um gesto de carinho. Não! Ele sabia que não havia tempo e nem ambiente para isso. Com os seus seis anos de idade, já tinha alguma independência e qualquer carinho solicitado a mais era considerado “frescura” ou capricho.
- Anda logo, sinão o teu pai...
Antes que a mãe terminasse, se levantou depressa. Sabia que com a severidade do pai não se brincava e num instante estava de volta à cozinha:
- Pronto! Já tô pronto - resmungou baixinho perto de sua mãe.
- Então toma o café e pega o teu imborná e o teu carderão de cumida” - instruiu a mãe em meia voz. - Os teus irmãos já tão esperano no caminho.
O caldeirão era de alumínio, novinho em folha. Aquele brilho fosco lhe fazia lembrar o dia da compra no armazém da vila: foi a primeira dor no coração daquele menino. Não havia mais dúvida: havia chegado o tempo , não tinha mais volta.
Pegou o caldeirão pela alça. A tampa era fixada por um elástico branco preso nas duas argolas de fixação da alça. Arrumou o embornal no ombro e saiu.
- Bença mamãe!” - e a mãe respondeu com uma voz carinhosa, e um olhar de afago:
- Deus te abençoe , meu filho! Vá com Deus!
E seguiu o seu caminho atrás dos irmãos que já puxavam uma pequena distância .No embornal azul pendurado no pescoço trazia além de um lápis, um caderno e uma borracha, a esperança nova que seus pais depositavam no futuro daquele menino, que começava os primeiros passos da educação no grupo escolar e haveria de fazer o ginásio, formação inédita para filhos de roceiros daquela região.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

ENGENHEIROS DE PAU-A-PIQUE

Naquele fim de semana o trabalho começou cedo. Os primeiros raios de sol já clareavam a cabeça dos meninos a baldear a terra que ia formar o reboco para as paredes da casa.
O trabalho parecia que iria render. Enquanto alguns meninos carregavam a terra retirada, outros ajudavam a preparar a massa que serviria para cobrir as paredes da nova casa.
Era preciso trabalhar em dupla: cada um cobria um lado da parede. Os dois pelotões de barro eram jogados na parede um contra o outro no mesmo momento e se fundia num só bloco tampando as frestas existentes entre as ripas. Cada dupla com seu ritmo uma em cada parede, começando de baixo e subindo em tacadas coreografadas pelos movimentos de uma dança de duas mãos ensaiadas pela necessidade de ser solidário e buscar no outro, somente a alegria de ajudar.

Já se ouvia lá num canto alguém a ensaiar uma moda qualquer:
“Levantei de madrugada,
Na minha besta bainha,
Fui numa festa de reis,
na fazenda lagoinha .
Pertinho de Porto Alegre
Eu cheguei lá de tardinha
Fazendeiro Zé valente
Família da gente minha...”

“É isso aí!” Falou alguém lá no barreiro.
“Eta, mundo véio sem porteira”. – Gritou o Paulo que trabalhava em uma das paredes. E emendou junto:

“Sortei a mula no pasto
Dispois de dar um repasso
Dei uma vorta na sala
Sortei meus peito de aço
Vi uma morena trigueira
Fiz os verso no embaraço.
Quando eu repiquei a viola
Ela caiu nos meu braço ...”

E as modas contagiaram também o pessoal que estavam trabalhando no barreiro e o ambiente ficou alegre e suave.
O trabalho rendia. A terra vermelha amontoada era misturada e molhada com baldes de água salobra tiradas do poço. Com os pés descalços, os meninos pisavam sobre o barro e aos poucos formavam uma massa liguenta que custava descolar dos calcanhares. Para os meninos e meninas tudo era uma grande festa.
“Tráis o barro gente! Aqui têm trabaiadô. Parece que aí só tem cantoria!”, reclamara o Aparecido por ter acabado o barro de sua caçamba.
As lata de barro foram chegando mais depressa e o trabalho seguiu seu rumo.

“Õ cumpade o meu estamo tá fazendo um baruio um poco estranho. Parece que ele tá adivinhando a hora. Já passa das nove e ninguém aparece com esse armoço” – O Paulo já reclamava de fome.
“Pode deixá essa cunversa de lado, cumpade, que daqui eu já tô vendo a comade Maria c’os cardeirão. Vem chegando mais a Ronda e os menino, cada um cum imborná. Vai ser um banquete! Pode falá aí pro teu estamo que ele vai se fartá de tanto cumê”. – O Aparecido trabalhava numa parede externa e conseguia ver a Maria e a Irondina chegando com as vazilhas cheias, trazendo o tão aguardado almoço.
“Ê pessoal!! Vamo tratá de lavá as mão que o armoço já tá no toco”. – gritou.
Foi uma movimentação geral. Os primeiro a chegar foram os menino. Pareciam desesperado para se servir do almoço que trazia um tão cheiro gostoso que as lombriga se remexiam por dentro das barrigas. De um lado a macarronada feita com molho de tomate natural e carne moída, trazida especialmente da vila, e de outro aquele arroz soltinho amarelado pelo pó do orocum (colorau) acompanhado de feijão e frango ao molho. Os caldeirões de alumínio que não ajustavam mais as tampas, de tanto que eram os amassados que continham, foram colocado um ao lado do outro em cima banco de prancha de madeira que o próprio Aparecido havia construído.
“Peraí, primeiro os mais véio”. – gritou o Zé Batista , vizinho do sítio, quebrando o silêncio.
“Eu só quero cumê o coranchim do frango. O resto pode ficá pro cêis”. – sugeriu o Paulo com seu jeito brincalhão.
“Fica tranqüilo Cumpade Paulo, nóis fizemo dois frango, vai sobrá curanchim. O Parecido gosta mais é do jogo, esse pedaço ele disputa com os minino lá em casa”.- comentou a Irondina, chamada pelos cunhados de "Cumade Ronda".
“Mais hoje eu num faço questão de nenhum pedaço. Vocêis pode cumê quarqué parte do frango, se sobrá os pé pra mim já tá muito bão. O trabaio rendeu muito e eu tô muito agradecido a todos vocêis. Vamo armoçá todo mundo com a graça de Deus”. – finalizou o Aparecido.

E os menino tomaram a frente da fila com os prato de esmaltado de "ferro agate" (ferro ágata) estendidos. As mãos hábeis das cozinheiras dividiam os pedaços de frango para que os mais velhos ficassem com as melhores partes, o que era parte da boa educação das crianças daquela família.
Depois de servido, cada um seguia por um lado, procurando uma sombra ou um canto para se sentar Só não tinha cadeiras, bancos era só escolher: o cabo do enxadão sempre servia prá alguém. O outro preferia o baldrame da porta ou o barranco do terreiro. À vontade...

Depois de matar a fome, todos tinham direito a cinco minutos pra cochilar um pouco por ali. As crianças aproveitavam para reinar pelos arredores a procurar um bicho ou alguma coisa para mexer.

Depois de entregar o prato satisfeito, o Aparecido ficou por ali a olhar de cômodo em cômodo a imaginar que talvez nem precisasse do domingo para terminar aquela tarefa. Se avançasse um pouco na tarde terminaria com folga.

“Ronda, pede prá cumade fazê um bolo prá nóis cumê na merenda. Vamo reforçá o pessoal que acho que nóis vamo terminá a terefa ainda hoje”- Era de costume ter três refeições por dia: às nove horas era servido o almoço, à uma hora da tarde era servido a merenda (café) e depois o jantar que era servido mais ou menos as cinco ou seis horas. Algumas pessoas serviam na merenda uma repetição do almoço, isto é, comiam da sobra do caldeirão ou da marmita.
“Pode deixá. Nóis vamo fazê bolo de milho. Os minino gosta. Nóis já catemo dois saco de espiga de milho. Da quase prá fazê pamonha. As espiga tão todas muito graúdas que só vendo” – concordou Irondina
E foi-se embora os caldeirões vazios a balançarem nas mãos de quem os trouxe. Os guardanapos feitos de pano de saco de farinha de trigo ou de açúcar, que serviram de proteção ou alça para os pratos, jaziam pousados nos ombros das cozinheiras a esvoaçarem com o vento que refrescava um pouco do calor do sol que já se fazia alto naquela manha de sábado.

“V’ambora pessoal. Quem vai trazer barro prá mim”.- o Aparecido já se colocava a postos prá começar de novo no serviço.
E cada um foi se movimentando em busca do seu posto de trabalho. Começando meio de devagar e entrando novamente no ritmo gostoso e alegre daquele convívio de amizade e cooperação.
O trabalho terminou cedo. Aparecido lavou as mãos, agradeceu a cada um que ajudara no mutirão, se afastou um pouco onde pudesse ter uma visão ampla da casa e gritou alegre:
“Quem disse que nóis num semo engenhero. Óia só que beleza! Nóis semo engenheiro sim. ENGENHEIROS DE PAU A PIQUE!”

A CASA

A Casa

O sonho do Aparecido de possuir a terra, não o proibia de ter também o sonho de construir a sua própria casa. Os irmãos Paulo e a Laura já tinham construído as suas e estavam dispostos a participar do mutirão, para ajudar o Aparecido a erguer, no pedaço de terra que lhe cabia, a tão sonhada construção.
Não precisava ser uma casa grande, bastava ter o quarto das crianças, o quarto do casal, uma cozinha com dispensa e uma sala para receber o os móveis como oguarda-louça, o grande rádio de válvulas; e receber as visitas que eram sempre muito bem vindas naquela famíla cabocla, de origem indígena com algumas raiízes portuguesas.
O desenho já estava na cabeça. O banheiro não fazia parte do projeto, o que se chamavam de “privada” era para os sertanejos um luxo, pois quando precisava o pessoal usava as moitas mesmo, que estava ali perto e não custava nada. Naquele tempo o dinheiro era sempre muito difícil. Tinha-se muita fartura de comida mas dinheiro mesmo só nas vendas das colheitas e nem sempre o tempo ajudava. Muitas vezes se perdia quase tudo por causa de uma chuva que fazia nascer ainda na vagem, feijão que estava pronto para colher, ou o sol que prejudicava a germinação das sementes quer fora colocada na terra.
Todo o projeto da casa deveria ser feito com materiais tirados da própria terra e os tijolos eram muito caros e só servia mesmo pra fazer casa de gente rica, sitiante ou gente da cidade. A casa do Aparecido , como as duas outras já feitas no sítio, seria feita de madeira tirada da mata e ripa de coqueiro: o folclórico pau-a-pique.
As peças para os esteios da casa deveria ser madeira de lei: arueira, jatobá ou outra madeira de cerne.
Muitos dias se passaram e a soma do trabalho em mutirão fez multiplicar as ações e logo as paredessugiram e começaram a tomar forma de casa.
As casas de pau-a-pique eram construídas em estruturas de madeiras roliças, fechadas com paredes de ripas de coqueiros, pequenas varas de paus roliços ou taquaras e rebocadas com massa de barro ou saibro misturados, algumas vezes, com casca de arroz. A cobertura sem forração é feita com troncos roliços distribuídos em treliças num verdadeiro trabalho de engenharia. E no ripamento para as telhas são usadas também as pranchas de coqueiro do tipo guairova. O piso é feito com barro vermelho ou de saibro, nivelados pelos baldrames da estrutura da base. As escadas de acesso aos níveis mais altos eram construídas com pequenos troncos lascados em pranchas colocadas lado a lado.
Já estava quase pronto. Só faltava cobrir com telhas e rebocar com barro ( barrear). O mutirão trabalhava firme: o Paulo, o João, a Laura e os meninos.
“Joga a teia cumpade Paulo. Vamo vê se nóis cobre tudo hoje e fais o arremate do emborço – gritou Aparecido de cima da casa.
“Trais as teias cumpade João. Vamo meninada, vamo depressa”. Gritava o Paulo para colocar os meninos e o João, Marido da Laura, em serviço para colocar as telhas mais próximo para serem atiradas para o Aparecido no madeiramento da casa.
Os meninos correram para o monte de telhas que fora colocado do outro lado e raidamente as telhas foram amontoadas ao pé do tio que com um toque mágico ia jogando uma a uma para cima.
Eram do tipo paulista confeccionada com um barro queimado branco-acinzentado que ao ser colocadas sobre as ripas formavam um desenho de sombra que ia se alastrando por todos os cômodos da casa.
“Ta ficano bonito cumpade. Logo vai podê si mudá se quisé”. – elogiou o irmão.
“Eu num tô com muita pressa não cumpade. Eu ainda tenho que acertá arguma coisa lá com o Seu Zaíco. Mais eu tava cum vontade de vim barreá a casa nesse fim- de-semana. O que senhor acha? – Perguntou com ao irmão erguendo as sobrancelhas como se querendo mais uma opinião do que uma concordância.”
“Eu acho bão, compade. A gente convida todo mundo prá vim ajudá e fáis um armoço gostoso. O pessoar dos Vilela são muito bão e e capais que vem cum certeza.”
“Num pricisa de muita gente não compade. Basta o nosso povo e os mininos que nóis fais bastante serviço num dia. Nóis vem no sábado e termina no domingo. Barro nós tem de sobra nos barranco do terreiro. É até bão que aumenta um pouco esse lado de cá”. – Falou mostrando uma parte da frente da casa que haveria de ser o terreiro de secar os grãos ( café, arroz e feijáo).
Tá bão, respondeu o irmão. O sinhor me permite intão só chamá só o Zé Batista. Ele tem me perguntado todo dia quando é que nóis vai chamá eles prá ajudá em arguma coisa”.
Pode ser. Desse povo eu gosto. Têm uns mininos direito bastante educado. Pode chamá.”
Enquanto conversava os serviço não parava e as telhas se acomodaram todas e o telhado se fazia quase perfeito.
Já bem a tardinha, o cansaço era visto nos rostos de todos. “ Daqui a pouco já fica pronto. Aí é só respardá a cumunheira e já pode colocá os trem prá dentro.” Brincava o Aparecido colocando as últimas telhas.
E foi logo. João preparou a massa de barro, os meninos carregaram e de repente e as cumunheiras ficaram prontas.
O cansaço compensou o resultado do trabalho em família. Sentados tomando o cafezinho fresco coado na casa da Comadre Maria e trazido numa chaleira de alumínio escurecida pelo pretume do fogo do fogão a lenha, os irmãos contavam histórias e faziam planos para os próximos dias.
O Aparecido teria que desbravar uma mata fechada e destoca-la para a plantação de mudas de café, compromisso do contrato de trabalho com um fazendeiro para garantir o trabalho e o sustento da família.
“No mês que vem eu já vou começá a mexê no mato.” ( Aparecido falava olhando no infinito como se tivesse sentindo o trabalho pesado do corte no machado). “Temos que ir com muita corage porque o trabaio é brabo. Tem angico que dá prá dois home abraçá. E tem que ser no machado mesmo, num tem otro jeito.”
“Eu vô dá uns serviço pro senhor por argum dia, se o senhor quisé.” - Diz o irmão com espírito solidário. – “Minhas roça tão toda limpa. Dispois nóis troca serviço. Eu acho que compade João tamem pode ajudá um poco. Não é cumpade?
“É sim, pois intão. Nóis ajuda sim”. – Falou João , com a sua pequena estaura, concordando também com a cabeça.
João era o marido da Laura que ajudava no trabalho porem não participava muito do assunto quando os dois irmão conversava. Ele se contentava em ouvir enquanto brincava com a caneca de esmalte que acabara de tomar café.
O sol se pôs e a tarefa do dia estava entregue. Aparecido ainda tinha uma viagem e tanto para voltar prá casa e o frio das noites de julho era medonho...
“Nóis já vai, compade, tamo todos muito cansado. Os menino trabaiaro muito.As ferramenta pode ficá aí com o sinhor. O sinhor guarda prá nóis. Eu vô levá só as otras traias.”
“Rube, péga o cavalo, vamo arriá a carroça prá nós ir embora. Vamo aproveitá um pouco da claridade que tem prá chegá na estrada de Turmalina. Depois só vai ser o clarão da lua mesmo.”
O cavalo foi colocado a postos embaixo da carroça de rodas de pau, que estavam com os braços inclinados com a arreata e foi só apertar as barrigeuras e colocar as rédeas e pronto. Estavam preparados.
“Até outro dia se Deus quizer. Qué dizê, até sábado, né?”
A Laura puxou a porta da sala da casa que ainda estava aberta e amarrou com um pedaço de arame. A porta ainda não tinha tranca . Era feita de tábua de cedro colocadas na vertical e com dobradiças fixadas direto nos batentes roliços. A tranca de dentro era uma tramela lavrada com facão e por fora não tinha outro jeito senão amarrar com arame amarradoi por um buraco feito para este fim.
“Deixa assim memo cumade, dispois eu vô arranjá uma fechadura daquelas de ferro prá colocá nessa porta , aí agente pode saí mais sussegado e evita que argum bicho entra prá fazer disorde.” – O Aparecido tranquilizando a Laura que estava preocuada com o fechamento da casa.
Naquele tempo não existia a preocupação com ladrões, nem baderneiros. Os baderneiros podia ser um bicho do mato qualquer que invadiam as casas em busca de comida fácil.
“Meninos, fala bença pros tio , munta logo no carrinho e vam’imbora.” – Mostrava o Aparecido a boa educação aos meninos.
“Bença tio. Bença tia”
“Bença padrinho. Bença madrinha.”
“Deus abençõe ocêis tudo. Vão com a graça de Deus.”
Os meninos se aninharam na parte trazeira da carroça de rodas de pau que era puxado pelo cavalo “Piano” que tantos serviços prestava àquela família.

Os acenos de boa viagem foi respondido até a carroça alcançar o topo da estrada. Dali prá frente era uma viagem silenciosa pois sol já tinha se escondido e a escuridão veio junto com o cansaço dos meninos que se transformara em sono. Nem os solavancos da carroça sem amortecedor mechia com o sono dos pequenos.
Nos pensamentos, aquele homem jovem de apenas trinta e um anos, já sonhava com uma vida melhor para os seus filhos: “Eles vão tê que estudá mais que eu. Eu vô lutá prá isso”. E completava. “Agora nóis já tem uma casa no que é nosso. Só falta trabaiá bastante. Vamo prantá verdura naquele “brejo” e os menino já pode cuidá das roça (...) Um dia nóis vamo morá na cidade.”
Uma porteira o tirou dos seus pensamentos:
“Rube, acorda, levanta daí detrais e vem abri as porteira,”. O menino desceu, abriu a porteira, deixou passar e veio sentar orgulhoso junto com o pai no banco da frente da carroça. Ajeitou o pelego que cobria o banco e se arranjou segurando nas travessas laterais.
“Nóis vamo mudá logo pra cá, papai, perguntou o menino curioso.
“Eu acho que sim. È só acertá as coisa lá com o seu Zaíco e podemos mudá. Fica melhor pra gente mexê no destocamento das roça”.
“Eu gostei da nossa casa nova, papai. Ficou bunita. Só a água que é meio sargada, mais a Laura tisse que tem uma mina que dá água fresquinha lá embaixo depois do corgo”.
“É...parece que tem sim. Tem muita coisa que fazê ainda dispois que a gente mudá...”. E a carroça seguiu seu caminho vagaroso, levando na escuridão um homem que buscava o futuro acreditando que a lua logo viria com seus raios prateados para iluminar a estrada que levava junto da sua companheira.

LAÇOS DE FAMILIA

Eram quatro alqueires de terra divididos em quatro partes iguais. Eram também quatro irmãos. Três dos quatro irmãos ficou com uma parte cada um. Uma das partes ficara com o pai. Uma das irmãs não participara da divisão, isto porque não era herança e sim fruto da economia de muitos anos de trabalho. A busca pela realização do sonho de ter a sua própria terra viera da união de pensamento dos irmãos que sempre viveram da terra alheia a prestar serviços na lavoura de café, de algodão e outras culturas. Também fora uma maneira dos “meninos”, como eram chamados os irmãos, de unir novamente a família, que sofrera a terrível perda da matriarca, mãe, quando ainda eram muito jovens.
O alqueire do pai ficara com o irmão mais velho que o adotou depois que todos os filhos e filhas se casaram. Ele bem que mereceu este presente, pois sempre foi fiel à sua saudosa esposa, cuidando sozinho do crescimento dos filhos.

O Sr. José, patriarca da família, não completara sessenta anos, mas já mostrava em sua face as marcas do trabalho no sol, no seu ofício de carreiro de que tanto se orgulhava. Naquele tempo já existiam as carroças, os caminhões e tratores, mas o som dos carros-de-boi ainda zunia como música nos ouvidos daquele homem, cuja vida se dedicou ao trabalho duro e solitário para criar os filhos, que quando ficou viúvo, o mais novo estava com quatro anos apenas. De todos os anos que trabalhara quase nada havia acumulado: apenas um cavalo de sela e uma boa traia. As roupas eram simples como simples era a sua maneira de ser.
Com o seu olhar cabisbaixo, retraído, pouco se falava. Pouco também se sabia da vida dele. Parecia carregar uma dor de um amor perdido, ou de uma vida sem sentido. Contavam-se muitas histórias de que o Sr. José muitas vezes tenha tentado se matar por causa da solidão e da companheira perdida. Mas venceu a batalha junto com os dois filhos homens que sempre deu suporte à sua auto-estima e à sua solidão. Os vizinhos e amigos o tratavam como Seu José Carvalho, os netos de Vovô Carvalho e um outro de pai-, fruto da sua convivência permanente com a criação dos netos.
Pelo sobrenome, a árvore genealógica mostra uma raiz portuguesa nas origens do Sr. José Carvalho, mas a sua esposa, Maria Abadia, era com certeza descendente de indígenas brasileiros. Nenhuma fotografia ou pintura teria para retratar, mas os traços do rosto, os poucos pelos no corpo e os cabelos lisos dos filhos, não deixavam dúvidas sobre a descendência de brasileiros autênticos.
A família dos meninos, era composta por quatro filhos: dois homens (os mais velhos) e duas mulheres. Naquele tempo somente a mais nova não estava no negócio do sítio. Ela havia se casado com homem viúvo que já tinha dois filhos de outro casamento e moravam numa fazenda do outro lado da comarca. Por mais que a convidasse para vir morar mais perto, para desfrutar da união das famílias, ela não aceitava e continuava a viver numa situação de miséria extrema num ranchinho perto de um pequeno ribeirão, rodeado pelas roças de milho e mandioca em caminhos ladeados por carrapicho e picão. Essa era a maior tristeza dos irmãos. (...)

Dos irmãos, Paulo era o mais velho e carregava a responsabilidade de cuidar do pai e ganhara o respeito dos outros na hora de decidir sobre os caminhos a tomar. Paulo estava no seu segundo casamento, pois ficara viúvo muito cedo. Aparecida, com a qual vivera alguns anos , morreu deixando um filho que agora era criado com muito carinho. Era um homem simples, mas de uma inteligência exemplar. Suas ideias e criatividade eram sempre vista nas suas coisas e suas palavras. Tinha o hábito da leitura e sabia contar histórias como ninguém. Gostava de fazer negócios de trocas e permutas. Este hábito lhe fazia mudar com frequência de objetos e animais. Tinha sempre em sua casa uma bicicleta diferente, uma carroça nova ou um rádio quebrado que pegou na troca de um cavalo com uma charrete de pneus. Tinha um gosto especial pela música. Na sua juventude, juntamente com o seu irmão mais moço e o seu tio Marcílio, tocavam viola em bailes e festas na região de Votuporanga e Rio Preto.

Aparecido era mais moço e buscava sempre a união da família. Era dele a ideia de comprar o sítio juntos para estarem sempre perto um do outro. A seriedade nos negócios e nas atitudes era a sua marca registrada. A energia no tratamento com os filhos o fazia um homem de poucos sorrisos, mas de muita honestidade. Suas relações com as pessoas eram solidárias e de boa fé. Suas ações eram planejadas e a sua família era o que de mais precioso se tinha. Seu rosto fino e o cabelo liso e fino trazia os traços de sua descendência cabocla. (Sua avó teria sido índia ou bugre de origem nativa). Um homem de muitos dons. Sua intimidade no trabalho da madeira resultava sempre em uma peça a mais na sala ou no quintal.
Cido se casara cedo, e a escolha foi dentro da própria familia, pois a sua companheira também era sua prima legítima. Na época da compra do sítio, os seis filhos que Deus lhe dera já eram nascidos, sendo que o mais novo, o Paulinho, já completava os seus quatro anos.

As duas irmãs , Laura e Narcina se rendia aos seus maridos e viviam em busca de uma boa relação com os irmãos o que nem sempre eram compreendidos por todos.
A Laura era uma mulher de fibra, seu rosto magro e queimado pelo sol mostrava no seu semblante o resultado do trabalho pesado da enxada e das colheitas de algodão. O cigarro era seu melhor companheiro. Transferia toda a sua amargura em pitadas longas e profundas naqueles bastonetes de tabaco picado, enrolados em palha de milho. Laura buscava nos irmãos a segurança que não possuía no casamento. Casara com o João, um homem de pequena estatura que buscava em seu trabalho, o balanço da falta de formação escolar que não tinha.

Descendentes de família católica, era comum entre os irmãos dar os filhos uns aos outros para serem batizados e assim se tornavam “compadres” e “comadres” e eram como se tratavam com muito respeito.
Quando comprou o sítio, o Aparecido mandou fazer uma grande placa, com o patrocínio das “Casas Pernambucanas”, e colocou na entrada do sítio, na estrada que ligava Docinópolis a Populina, com os seguintes dizeres: “ENTRADA – SITIO DOS MENINOS”. E assim ficou como referencia para todos que passavam. E lá ganharam o respeito e amizade de todos os vizinhos.

domingo, 7 de outubro de 2007

A moringa

Começava o mês de julho. O vento gelado chegava trazendo o desconforto do frio nos lares dos sertanejos. As únicas blusas feitas de flanelas na velha máquina Vigorelli da Irondina fazia a diferença na casa.
As paisagens brancas dos nevoeiros cobiçavam a maginação dos meninos e as aventuras fictícias forjavam histórias nas fantasias da infância.
Naqiuele mês estavam todos de férias escolares e as tarefas diárias eram mais divididas. As responsabilidades pequenas ficavam com os pequenos e para o Neno, como caçula da casa, sobrava sempre o caminho da mina para buscar água com a moringa.
A moringa era uma espécie de pote de barro cerâmico totalmente fechado com duas aberturas: uma com um buraco maior, com formato de orelha, para ser a entrada de água e a outra com um furo fino (mais ou menos dois milimetros) com formato de mamilo de vaca, por onde, os mais experientes tpmavam água se ter a necessidade de usar caneca, despejando a água diremente na boca.
Aquela rotina era necessária por conta de que a água do poço de trinta e cinco palmos (chamada de cisterna), era muito salobra e não servia para o consumo potável. Mal dava para lavar as roupas empoeiradas da lida diária, que precisavam ser fervidas com sabão para tirar o excesso de sujeira.
Eram quase mil metros de caminhada pelos trilhos de pedregulho até a baixada do córrego. A mina d’água ficava do outro lado e a travessia ficava por conta de uma ponte feita com troncos que nunca era usada, pois dava-se preferencia pelas pinguelas de dois paus colocadas sobres as águas límpidas ligando as duas barrancas pouco profundas do Córrego do Tieta.
Da correnteza das águas subiam pequenas nuvens de fumaça parecendo borbulhar de fervura indicando a diferença da temperatura que era suportada vestidos apenas com as blusas de flanelas. Os dentes batiam trêmulos produzindo sons de percussão, tentando aquecer os pequenos músculos, que pareciam pedras de gelos no arrepio das correntes de ventos, que soprava de vez em quando.
A mina ficava encrostada na beirada da cerca do lado das terras dos Vilela. O Aparecido havia feito algumas adaptações para colher a água. Um grande buraco com tábuas e uma bica de telhas trazia a água de uma cor meio azulada com segurança e limpa para dentro da vazilha que a coletava. De vez em quando era preciso fazer a manutenção da bica por causa da formação de limbos.
A vazão da água não era muito boa nesta época, e parecia que havia saído da geladeira direto para a bica, de tão gelada que era. Nos meses das águas ela jorrava mais forte. O Neno aproveitava os momentos de espera da moringa se encher para cavar um buraco com o barro branco de saibro com uma pequena vara encontrada por ali. O frio não liberava muita energia para reinar. Os dentes ainda tirintavam.
A moringa cheia era colocada dentro de um saco de estopas ( usado para estocar café) e colocado sobre a costa. O caminho de volta era mais penoso pois a ladeira de pedras, exigia um esforço físico grande para equilibrar o peso da moringa que insistia sempre a levar-nos para baixo.
Neno parava prá descansar e ficava a ver na baixada os movimentos dos irmãos que ainda manipulavam os regadores de folhas de lata, molhando as verduras de folhas que a geada da noite havia coberto com seu manto branco. As plantações de verduras e legumes eram uma opção de sobrevivência na roça, pois eram delas que vinham os alimentos que também era comercializado para obter dinheiro para o macarrão, o açúcar e o sal de todo dia.
Os trabalhos nesta época eram poucos por causa da estiagem que limitavam o crescimento das sementeiras nas plantações de café. Guiados pelas orientações do chefe da casa, todos ficavam a cuidar das pequenas culturas de subsistência mantida aos redores da casa: abacaxi, mandioca, milho, pomar de frutas, cana de açúcar e batata-doce.
As férias trabalhadas na roça tem um sabor especial de aventura sistêmica: é como um monitor que determina uma gincana com várias atividades a executar e cada qual com o seu potencial vai concluindo e fechando a gincana diária com o objetivo de seguir no outro dia com objetivos pré-determinados condicionalmente: se chover , se o milho granar, se o café secar, se o tempo melhorar, se as férias acabar.
E o pequeno Neno seguia com sua moringa morro acima. Algumas vezes o caminho seria a roça de café que distanciava mais ou menos mil metros de casa, utilizando os atalhos pelas roças do Sr. Carlos. A Moringa era depois passada para um dos irmãos mais velho.
Naquela manhã o trabalho seria de plantar ramas de batata doce para garantir as mudas.

TETRACLOROETILENO

A lua com sua magia iluminava a noite que mal começara. Aparecido sentado numa cadeira de assento feito de taboa ao lado de sua companheira, olhava pensativo para o horizonte como se quisesse buscar a resposta a alguma pergunta. Talvez uma volta ao passado. A Irondina aproveitava a luz da lua prá debulhar umas vagens de feijão catador que colhera a tarde na hora que fora levar a merenda na roça.
Os meninos inquietos corriam de um lado para outro buscando algo para fazer. De repente um deles e veio com uma sugestão: “Mamãe, pode chamá o Vardeci e o Jura prá brinca com nóis aqui em casa? Fais tempo que a gente num brinca junto”. E a Irondina que se sempre colocava em segunda autoridade, deixando a decisão definitiva com o pai: “Fala lá pro seu pai, se ele dexá...”.
Esta era a palavra mágica. Pedir para o pai era mais difícil, pois sempre havia um motivo para proibir as crianças de fazer barulho para perturbar o descanso, pois a vida da lavoura não permitia exageros de ficar acordados até tarde. No máximo às nove horas da noite todos iam para a cama. Mas ainda era cedo: não passava das seis. Não custava tentar.
Cido continuava a olhar no horizonte num gesto pensativo com o cotovelo no joelho e a cabeça apoiada em uma das mãos sem prestar muita atenção na conversa das crianças. “Fala você prá ele mãe”, insistia a menina Ira, baixinho no ouvido da mãe, que gostava de participar das brincadeiras com os primos. “A gente pode chamá a Rosa e a Creuza prá brincá tamem... Se elas quisé...”.
A Rosa e a Creuza eram as primas mais velhas filhas do Paulo que moravam na última casa do sitio na divisa das terras do Seu José Batista. O Valdecir e o Jura ( o nome dele era Doraci) eram filhos da Laura e do João, irmã e cunhado que dividiam o sitio.
“Tá bão. Só que não vai fazê latomia que seu pai num gosta de tropé quando ela tá descansano” concordara a mãe, chamando a atenção do Aparecido: “Parecido, os menino tão querendo chamá os primo prá brincá aqui em casa. Pode dexá?” – Falou com jeito meio ressabiada esperando talvez uma resposta negativa.
Cido olhou como se quisesse entender o que se passava. Não tinha motivo nenhum para proibir os meninos de brincarem. Eram crianças muito saudáveis e já ajudavam muito nos afazeres do sitio: “Dexa. Num pode é ficar até muito tarde, que nóis precisa descansar cedo. Amanhã temo que coiê o milho do meio do café. Todo mundo vai prá roça”.
E lá foram todos alegres e felizes para voltar em breve com todos os primos prometidos. “Vamo brincá de balança-caxão? Quem vai ser o primeiro?. – dizia o Vardê da Laura que costumava liderar as brincadeiras do grupo. “ Ocê. Ocê fica prá procurá primeiro” . Indicou o Cilo. “Nóis vamo se escondê”.
“Não sinhor. Vamo tirá na pedrinha. O úrtimo fica prá procurá”. – Determinou então o Vardê.
E assim foi. O Neno, um dos mais jovens, ficou sendo o primeiro a procurar. O pai acompanhava tudo e viu que de certa forma os mais velhos enganaram para que ele ficasse para procurar:
Todos em fila, um atrás do outro, curvados para frente:
- Balança caixão
- Balança você
- Dá um tapa na bunda e vai escondê.
E todos iam se enconder. Cada um escolhia um lugar mais difícil e depois ia facilitando para chegar mais perto do pique para se salvar e continuar se escondendo na próxima brincadeira. O primeiro a ser achado seria o próximo “procurador”.

Com toda aquele movimento, não foi possível que Aparecido não prestasse atenção nas brincadeiras dos meninos. Ficou observar o Neno a correr de um lado para outro a procurar os escondidos. “Jura. Achei. Um, dois, três”. Já tinha conquistado o direito de se esconder na próxima.

Vendo toda aquela saúde do menino Neno, Aparecido se lembrou de uma história que fez a vida daquele menino estar à prova de Deus e de um remédio:

Neno ainda era pequeno, começava a dar os primeiros passos pelo chão de terra batido da casa de pau-a-pique quando encontrou uma lamparina de querosene largada num canto do quarto. Brincou com ela, derrubou um pouco do líquido no chão, levantou e saiu com ela para a cozinha. “Mamâ. Mamã...”
A mãe não estava por ali. A lamparina cheia de querosene balançava nas mãos daquele pequeno quase que caindo por causa do pouco controle que possuía. Caminhou mais um pouco, e se sentou, tirou o bico da lamparina e num gesto quase que instintivo levou à boca e bebeu aquele líquido repugnante.”Mamã. Mamãããã!!!”
A lamparina de querosene caiu pro lado e continuou a vazar pelo chão afora. Neno num choro quase sentido chamou a atenção da mãe que veio correndo: “Menino, que estrepolia é essa? O que aconteceu? Será que num pode ficá queto um pôco?”.
- Mamãããã!!!!
- Que qui é essa lamparina aí no chão. Meu Deus, ocê bebeu querosene? Minha Nossa sinhora.
Foi um tropé só. Todas as atenções foram para aquele acontecimento. O Neno tomou querosene e poderia estar envenenado: “Dá leite prá ele mãmãe. Se a sinhora quisé eu vô buscá lá na Dona Luzia do seu Carlos”, dizia a Zilda, se colocando a serviço.
“Num precisa. Vai chamá o seu pai. Temo que levá ele na farmácia prá tomá argum remédio”, determinou Irondina, querendo dividir com o companheiro aquela angústia.
O choro continuou junto com a tosse. De vez em quando Neno perdia o fôlego e era preciso virá-lo de cabeça para baixo, soprar no seu nariz para que ele voltasse a respirar.
Foi na farmácia e o farmacêutico diagnosticou: “Não tem problema não. Ele tomou só um pouquinho. Não vai ser tão grave. Eu vou dar esse remedinho aqui e vai limpar o estômago dele e amanhã deve estar bom. Depois dê bastante leite e água pra ele”.
O susto passou, mas o menino não ficou bom desde aquele dia. Deixou de andar, não comia direito, ficava só pelos cantos mole e sem movimentos. “Eu acho que esse minino tá invenenado ainda. Temo que levá ele num médico prá vê isso. Ele num qué andá mais, num come, nem fala mais mamã . Se a gente num corrê nóis pode perdê ele”. A Irondina se mostrava com preocupação de mãe.
“Fica tranqüila, Ronda, amanhã nóis vai no Dr. Arnaldo prá vê se ele dá uns remédio prá ele”, tranqüilizava Aparecido, colocando a mão em seu ombro num gesto de carinho.
E foi assim. Muitas consultas. Muitas outras internações. Muito dinheiro gasto com remédio, com viagens, com hospital e nada de que esse menino reagisse. O Dr. Arnaldo diagnosticou como “anemia profunda” e dava soro e remédios à base de ferro para tentar conter a situação. Nada dava certo.
A situação estava no limite. Não havia mais recursos e todas as possibilidades haviam sido usadas e nada de bom tinha acontecido. As esperanças estavam quase todas perdidas.
Um dia o Aparecido já desesperado, pegou o Neno e Dona Irondina e foram pra Populina conversar com um farmacêutico que o povo dizia que era muito bom. Era o Dr. Orozimbo, um senhor já de alguma idade que tinha uma farmácia naquela pequena vila. Naquele tempo os farmacêuticos substituíam os médicos nas doenças tradicionais e pequenos males.
Após ouvir a história do acontecido, o Senhor Orozimbo diagnosticou: “Esse menino está com verme! Ele está com muitos vermes na barriga. É preciso tomar um lombrigueiro forte prá limpar os bichos. Os bichos tão comendo todo o que ele come”
“Mais nóis já demo lombrigueiro prá ele e num adiantô nada!” – Falou a Dona Irondina
“Agora a sinhora vai dar este daqui”. – Disse o Sr. Orozimbo colocando uma caixa sobre o balcão. “É tetracloroetileno. Dá umas duas pílulas dessas prá ele em jejum de manhã. Depois vocês voltam aqui”.
E foram prá casa. No outro dia foi feito conforme o farmacêutico havia dito. Houve uma limpeza geral na barriguinha do Neno. Junto com as fezes saíram muitas formas de bichinhos. Vermes de todos os tamanhos.
“Óia só. Como é que pode tantos bicho na barriguinha dele. Tamem tem razão dele tá tão fraco”.
Os dias passaram e mais uma dose do remédio foi ministrado. O menino começou a ficar esperto e voltou a ser mais alegre e a fazer as alegrias daquela família.
- Tetracloroetilena, que troço mais difíci de falá. Como nóis podia imaginá que este bendito remédio fosse sarvá a vida do Neno Foi Deus e o Seu Orozimbo. Graças a Deus”.
Daquele dia em diante aquele “remédio” começou a fazer parte da vida de todos. O “lombrigueiro” era obrigatório a todos.
“Balança caixão. Balança você...” – Continuava a brincadeira.
“Graças a Deus”. – Agradecia o Aparecido pela saúde do filho. “Graças a Deus”.

sábado, 8 de setembro de 2007

A MUDANÇA

Depois da casa barreada e os acerto da colheita co o Sr. Zeíco, mudança foi feita ainda naquele mês. O caminhão do “Chiquim Pedro” um pequeno sitiante da vizinhança, estava a postos cheio de coisas prá descarregar. Para as crianças foi uma festa. Casa nova, amigos novos. As aventuras para os pequenos começara logo na chegada.
Os animais ainda se adaptavam ao novo ambiente. O cachorro Perigo, filho da cadela Campina logo se pôs a urinar pra todo canto, e logo se escafedeu no mato a correr algum preá que se colocara assustado com todo aquele movimento.
Tinha também a gata Chana, que parecia não entender bem aquela mudança. O lugar preferido dela era o paiól de milho e até então não havia se encontrado em toda casa. Miava alto parecendo querer uma explicação lovável.
“Neno, pega a Chana, dá um pouco de comida prá ela. Sinão ela não se acustuma e va’imbora.” – A mãe atenta a todos os detalhes, estava preocupada com o pequeno animal que tinha a função de caçar os ratos e comundongos que insistia em vir furar os sacos de arroz e farinha que ficava na dispensa da casa.
O menino, filho caçula saiu a correr atrás da gata para pegá-la. Conseguiu agarrá-la em cima da cama tentando pular a janela.
“Peguei mamãe, cadê a cumida dela?” (Para o menino Neno aquilo seria uma grande brincadeira.) .
“Taí na trempa do fugão. Mistura um pôco de arroiz cum feijão e põe neste prato de esmarte amassado. Sigura ela um pouco pr’ela cumê, depois pode sortá que ela vai ficano acustumada.”
A gata Chana ficou logo seduzida aos encantos daquele menino e começou a comer devagarinho o prato de comida, até lamber as bordas de feijão respingado que a pouca coordenação do caçula deixou no caminho da concha do caldeirão ao prato. Um afago a mais não faz mal a ninguém. Dali a pouco a gata estava rolando num trapo velho escolhido num canto do quarto onde pousavam uma montanha de roupas e panos que ainda estava prá arrumar. O caçula se encantou com o animal e esqueceu totalmente o trabalho de descarregamento da mudança.
“Neno, larga mão dessa gata um pôco e vem já pra me ajudá a guardá esses trem na cozinha. Pega aquele bule ali e põe em cima do fugão. Pega a chaleira tamem.”
O menino fez de conta que não ouviu e continou a insultando a gata que já parecia estar no seu habitat natural.
“Peraí que eu vô dá um jeito nesse muleque.” – Gritou o pai, vendo a desobediência do menino à mãe.
“Vem prá cá já sinão eu te pego de cinta.”
Num pulo a gata saltou para um lado e o Neno do outro. Pegou a chaleira e o bule e levou para a cozinha, colocou em cima do fogão e se apresentou à mãe.
“Tem mais arguma coisa prá levá, mamãe?”
“Pegue esses prato embruiado nos guardanapo e vai pono em cima do guarda-comida. Dispois nóis guarda direito.
Todo mundo estava envolvido. As poucas coisas da casa iam tomando os seus lugares. As meninas cuidavam das roupas, das louças, dos utensíolos. Aos homens sobrava as coisas mais pesadas e mais rústicas como as coisas da dispensa, o estoque de arroz, de feijão, de açúcar e de sal.”
“Papai, vai colocá o saco de sal no chão?” – perguntou o Rube sabendo que na outra casa o sal ficava num girau para não pegar umidade.
“Põe aí por enquanto, dipois eu faço dois cavalete e com umas ripa de guairova nós faiz um girau novo e põe tudo em cima.” - O pai falava com convicção, pois ele sabia como ninguém trabalhar a madeira e as idéias.
“Parecido, nóis esquecemo de arranjá um lugá pro pote. Dispois ocê tem que fazê um giralzinho pra por no canto da cozinha. Acho que naquele canto do outro lado do fogão, alí parece ser mais fresco. “ – Era a Irondina que estabelecia os espaços: o armário, a mesa, as cadeiras, o guarda-louça, etc.
Ao final da tarde, uma pausa para o descanso e para saborear um bolinho gostoso com café fresquinho feito no fogão de lenha ainda novinho construido pelas mãos do mestre Aparecido. Sentado no baldrame da porta da cozinha o chefe da casa olhava os fundos e planejava a preparação do terreno onde seria construido o chiqueiro dos porcos. Era preciso ainda limpar, tirar os tocos e cortar as madeiras no mato para a cerca.

O tempo foi passando e o lugar foi se transformando: uma roça de mandioca, uns pés de abacaxi, uma mangueira, um pé de tamarino. As cercas e piquetes vai delimitando os espaços e criando ambientes. O chiqueiro dos porcos foi construído com troncos fincados na vertical. Dentro uma pequena cobertura com telhas para proteger os coxos onde se colocava as lavagens (sobra de comida) e o milho debulhado. Este espaço era importante, pois da criação de porcos dependia a sobrevivência da família. Dos porcos se tiravam a gordura para as frituras e a carne para a mistura do dia a dia.
Um novo mundo e uma nova história. Era a “nossa casa” como dizia o Aparecido. O carinho e a paixão que sentia por este pedaço de chão transformava todas as coisas que construía em uma obra de arte. E tudo foi se transformando numa grande galeria. Uma galeria que ficou marcado nos corações daquela família e nos versos que rabiscava nas folhas soltas de caderno que sobrara das lições dos meninos.

UM FORTE ABRAÇO AOS AMIGOS

Obrigado por visitar este espaço.
Desde o dia 01 de setembro de 2007 estou publicando minhas Memórias. Faz parte de um projeto de livro que deverá ser lançado no dia 18 de janeiro 2010 no espaço da ESCALIBUR no Distrito de Sousas em Campinas.

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Paulo Freitas